O
AQUILOMBAMENTO DE HELVÉCIA E A EDUCAÇÃO INFORMAL NOS LUGARES DE MEMÓRIA
O distrito de Helvécia localiza-se no
município de Nova Viçosa, extremo sul da Bahia e no ano de 2005 foi certificado
como comunidade remanescente quilombola pela Fundação Palmares (Santana, 2014;
Gomes, 2007). As lutas pelo aquilombamento ocorreram a partir do avanço da monocultura
do eucalipto que, por consequência, transformou profundamente o modo de vida da
comunidade, causando o êxodo rural, desarticulando a economia e as relações
sociais tradicionais. Nesse contexto, a comunidade empreendeu a sua resistência
através da AQH (Associação Quilombola de Helvécia), organização forjada como
instrumento de luta contra os impactos destrutivos do agronegócio (Dias, 2001).
A viabilização dessa resistência deu-se por vias das memórias coletivas,
observadas aqui na perspectiva de Halbwachs (2012), Le Goff (1994), Nora (1993)
e Pollak (1992). Assim, por meio das memórias coletivas, segundo Gohn (2014),
Gadotti (2005) e Pateman (1992), a educação não-formal acontece em espaços
diversos e em tempos descontínuos, agindo na formação social e educando para a
participação coletiva.
Educação e
reconstrução de memórias
Os sons dos atabaques, os pés no chão, as danças
que corporificam as memórias, as conversas com os idosos, contos, vínculos com
a terra e a ancestralidade, são todos espaços e possiblidades que tornam
concretas as representações sociais de um passado/presente coletivo, atados
pelas memórias que atravessam identidades, corpos, saberes e lutas. Destarte, o
presente trabalho é um recorte de uma pesquisa de mestrado que busca
compreender como os lugares de memórias corporificaram a educação não-formal e
informal, onde são gestadas as identidades e alicerçadas resistências. Para
tal, é importante notar que o distrito de Helvécia, localizado no extremo sul
da Bahia, município de Nova Viçosa, foi fundado por decreto real diante do qual
o rei Don João VI permitiu “a concessão de sesmarias aos estrangeiros
residentes no Brasil” (Brasil, 1891, p. 166), especificamente aos imigrantes de
origem suíça-alemã, fundadores da então denominada Colônia Leopoldina. A
cafeicultura para exportação, desenvolvida na colônia, resultou na implantação
e adensamento da mão de obra cativa de origem africana. Santana (2014, p. 30)
afirma que em meados do século XIX, nas 38 fazendas de café distribuídas ao
logo do rio Peruípe, havia por volta de 2000 escravos identificados como
monjolo, jêje, cambinda, benguela e nagô, sendo que este último grupo compunha
a maioria da população. Para o cativo, estreitado entre indústria
agroexportadora e a escravidão, a posse da terra e o plantio para subsistência
tornaram-se sinônimos de liberdade, pois “em torno dessas roças, os escravos reelaboravam os
modos de vida autônimos e alternativos, forjando experiências profundas que
marcaram o período do pós-emancipação” (Gomes, 2017, p. 31). Sobre a terra plantavam, festejavam a
colheita, enterravam os mortos e celebravam a vida, construindo laços familiares e memórias
coletivas, tornando o espaço território da memória, ou seja, “mais que uma exclusiva dependência da terra, [pois] o
quilombo faz da terra a metáfora para pensar o grupo e não o contrário” (Leite,
2000, p. 339).
No período republicano o advento da monocultura de
eucalipto se soma ao histórico da comunidade de Helvécia que, em meados dos
anos de 1970 e nos anos subsequentes, avançou sobre as terras da comunidade,
promovendo o êxodo rural e alternado drasticamente os modos de vida da
população daquele distrito (Gomes, 2007, p. 83). Sob a sombra do agronegócio e
como forma de impedir o avanço da eucaliptocultura, a comunidade aquilombou-se,
fazendo da memória e da ancestralidade instrumentos de luta para a certificação
da comunidade como Remanescentes Quilombolas.
Memória e ancestralidade são elementos
estruturantes em sociedades de tradição oral, e é através delas que ocorre a
transmissão dos saberes, de modo intergeracional, com o fim de educar as novas
gerações através das experiências, ressignificadas no presente e nas
necessidades do grupo (Le Goff, 2013, p. 430). Nesse sentido, a memória
coletiva torna-se memória educativa, notada como educação informal, acontecendo
em espaços descontínuos, fora do tempo formativo escolar, instruindo para a
participação coletiva (Gadotti, 2005, p. 3; Gohn, 2011, p. 106). A educação,
aqui, é compreendida em sentido lato sensu, como ação coletiva, fundada em
relações sociais que ultrapassando as fronteiras da educação formal e, de
maneira dialógica, compreendendo que
“[...] ninguém educa ninguém, como tão pouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos”. (Freire, 2018, p. 96)
Assim, memórias e saberes se imbricam em um
processo educativo dinâmico que ganha centralidade na manutenção da comunidade
de Helvécia como Comunidade Remanescente Quilombola. No tocante a memória
coletiva Nora concorda com Halbwachs (2002) ao notar que “a memória emerge de um grupo que ela une”, assim, “a
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”
(NORA, 1993, p. 09), portanto “é um
elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual quanto
coletiva” (Pollak, 1992, p. 204). Nesses termos a educação não-formal e
informal se processam nos lugares de memória, sendo em Helvécia corporificados
na dança do bate-barriga, na construção de casas no embarreiro, no samba
de viola, nos cantos que ecoam do terreiro, na festa de São Benedito, nas
conversas, lembranças e fazeres que tornam a terra seu espaço de enraizamento. A
prática do aprender fazer fazendo, ou a participação educativa, revela-se em
sentidos amplos como aprendizagem significativa que atrela memórias,
ancestralidade e identidade a participação coletiva. As atividades de sociabilidade
supracitadas apontam para fazeres coletivos que imantam de sentido existencial
a comunidade, portanto, constituindo identidades e conduzindo à participação
política.
Contudo,
em meados do século XXo avanço das empresas de celulose sobre as terras da
comunidade rompeu com o modo de produção tradicional provocando desemprego e
migração, desarticulando as relações dos indivíduos com o grupo e com a terra.
A dificuldade de vida provocou a migração de membros da comunidade, destruindo
gradativamente os lugares de memória e, consequentemente, os espaços educacionais
não formais de transmissão e produção de saberes.
Os lugares de memória são sensíveis ao avanço da
monocultura de eucalipto, contudo fundamentais para existência da comunidade,
poisas memórias evocam o sentimento de pertencimento ao passo que o sentimento
de pertencimento retroalimenta as memórias coletivas e a capacidade de
mobilização social.A força da participação nas atividades do grupo são
elementos fulcrais para a educação política e a reprodução social da comunidade
helvética. Sobre a educação pela participação coletiva Pateman (1992, p.
61)nota que “quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles se
tornam para fazê-lo”, constitui-se a educação na ação como práxis educativa
informal. Os impactos também são sentidos nas identidades vinculadas à memória
no que corresponde a sua condição sempre dinâmica e contingente, ou seja, as
memórias se refazem nas lutas do presente, produzindo novos sentidos e
interpretações da comunidade sobre si.
Como estratégia de resistência contra o avanço do
agronegócio, em 2004 um grupo de moradores do distrito de Helvécia se mobilizou para
pleitear o título de remanescente quilombola, concedido pela Fundação Cultural
Palmares no primeiro semestre de 2005. Como consequência da mobilização a
certificação vincou o título de remanescente quilombola sobre o distrito, ensejando
novo expediente à memória e a articulação política da comunidade. Uma vez que o
movimento ocorreu em um espaço de tempo menor que um ano, e de maneira exógena contra
o interesse de parte da comunidade, os conflitos sobre o significado de ser
remanescente quilombola, sobre o passado da comunidade e as consequências da
certificação causaram rachaduras políticas entre os habitantes do distrito (Santana,
2014).A partir daí um anova agenda foi traçada pela a comunidade, tanto no
plano da educação formal como nas reformulações das memórias submetidas a
história do tempo presente.
Para o movimento de aquilombamento a memória é elemento
estruturante,sendo um referencial conectado ao tempo presente. O aquilombamento não
deve ser percebido de maneira estática, tão pouco como ação pertencente
exclusivamente a um passado colonial escravocrata, conforme o léxico do
Conselho Ultramarino português do século XVIII (Schmitt,
2002, p. 3).As ações de resistências e
a busca pela da posse da terra se tornaram sinônimos de liberdade,fundamentando
o sentido da luta quilombola pela manutenção das tradições, valorização das
identidades e memórias negras que têm o território como espaço de enraizamento.
O conceito de quilombo é móvel conforme o contexto de enquadramento temporal e
espacial, mas mantém em seu ethos elementos que correspondem o sentido original
do léxico derivado do tronco linguístico banto que significa união, comunidade,
arraial e, ou, grupo guerreiro (Lopes, 1996). Se a semantologia da palavra
quilombo é dinâmica também são suas formas de existir, agir e se organizar.
Portanto, tanto a memória como seus agentes são
dinâmicos. Nesse sentido, ao negociar identidades, reelaborar narrativas,
aprender com as demandas que lhes são apresentadas,as comunidades remanescentes
quilombolas têm no tempo presente o espaço de recriação e reinvenção de si. Sobre a dinâmica de identificação e representação das
lutas quilombolas Alfredo Wagner Almeida aponta que:
“Existe, pois, uma atualidade dos quilombos, deslocada de seu campo de significação ‘original’, isto é, da matriz colonial. Quilombo se mescla com conflito direto, com confronto, com emergência de identidade para quem enquanto escravo é ‘coisa’ e não tem identidade. ‘não é’. O quilombo como possibilidade de ser, constitui numa forma mais que simbólica de negar o sistema escravagista. É um ritual de passagem para a cidadania, para que se possa usufruir das liberdades civis”. (2011, p. 44)
A resistência da memória e a memória da
resistência, agem, portanto, como movimento educador que se realizam no tempo
presente apontando sentidos coletivos para a conquista da cidadania. Se em um
primeiro momento, para parte da população de Helvécia, a categoria quilombo era
desconhecida, após a certificação tal categoria passou a fazer sentido no campo
das lutas pela preservação das terras, bem como na reelaboração e
(re)negociação das identidades. Se “quem detém o poder de classificar o outro
pode fazer prevalecer seu próprio arbítrio e seu próprio sentido de ordem”
(Almeida, 2011, p. 54), logo, a autoidentificação como quilombola corresponde a
postura de enfrentamento em busca da cidadania e autonomia. O processo educacional que se realiza nos lugares de memória
constitui a liga identitária que sustenta o enfrentamento dos remanescentes
quilombolas contra a desagregação e pauperização da comunidade e de suas
memórias. Assim, o movimento político pelo aquilombamento é concebido em si como
espaço educativo para a participação política e reafirmação das identidades
negras.Ao promover reuniões, organizar palestras, fóruns e debater pautas
reivindicatórias em benefícios da comunidade de Helvécia a AQH (Associação
Quilombola de Helvécia), como fruto da movimentação política pelo
aquilombamento, também se tornou espaços de mobilização, educação informal e
não-formal, voltada à negritude, aos interesses da própria comunidade e a promoção e
valorização das identidades negras. Tense, nesse sentido, a (re)construção dos
lugares de memórias, de resistência e a reinvenção do ser quilombola em diálogo
educativo constante e dinâmico com seu contexto político e social.
Referências
Renato Pasti é formado em História licenciatura
pela UNEB e Mestrando em Ensino e Relações étnico-Raciais pela UFSB.
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