Emanoel Campos Filho



TIA MARIA DO SUL DE MINAS E TIO QUINCAS NAS AULAS DE HISTÓRIA NUM COLÉGIO PÚBLICO DE INHOAÍBA, CAMPO GRANDE, ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: REFLEXÃO METODOLÓGICA E PRÁTICA DIALÓGICA DE ENSINO NA APLICAÇÃO DA LEI 10639/2003


Introdução
A partir da experiência pedagógica num colégio público da Zona Oeste carioca estabeleceremos relação entre a prática educadora preconizada pela Lei 10639/2003 e o reconhecimento da medicina tradicional e da religiosidade de matrizes africanas no processo histórico brasileiro.

O reconhecimento do legado civilizatório africano (BRANDÃO (Org.) et al., 2006) é questão estruturante da nossa identidade enquanto nação. Nosso território brasileiro, nossas formações sociais e nossa identidade cultural estão umbilicalmente relacionados com a presença dos africanos que desde o século XVI aqui estão presentes.

Não obstante o inquestionável contributo realizado por africanos na viabilização do modo de produção colonial e posteriormente imperialista de produção, somente recentemente os estudos da História da África e dos afrodescendentes fazem parte do nosso currículo educacional, nos seus diferentes níveis. Além de termos sido o último país nas Américas a abolir o trabalho escravo somos também retardatários quanto ao reconhecimento do legado africano na construção de nossa nação nos currículos do sistema de ensino.

A Lei 10639/2003, de 9 de janeiro de 2003 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei no. 9394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, tornando obrigatória no currículo oficial da Rede de Ensino a temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.(BRASIL,20013)

Tempo e espaço
A partir da experiência em sala de aula nos momentos introdutórios da primeira série do ensino médio da disciplina história no Colégio Estadual Missionário Mário Way (CEMMW) desenvolveremos a nossa reflexão.

O universo de estudantes é proveniente de distintos territórios da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, agregando Inhoaíba, Cosmos, Paciência, Santa Cruz, Campo Grande, Santíssimo, Senador Camará, Bangu dentre outros.

O CEMMW se situa na Av. Cesário de Melo, 6851, bairro de Inhoaíba, região de Campo Grande. A citada avenida tem sua origem na antiga Estrada dos Jesuítas, posteriormente denominada Estrada de Santa Cruz. Um dos principais caminhos dos tropeiros do Rio de Janeiro a São Paulo,partindo do Largo da Cancela em São Cristóvão até a Fazenda de Santa Cruz. Local que remonta ocupação colonial desde os seiscentos, que vivenciou diferentes ciclos econômicos e protagonizou múltiplas atividades econômicas como a criação de gado, o cultivo da cana de açúcar, do café e da laranja dentre outras.(MANSUR,2008)

O bairro de Inhoaíba, junto com Campo Grande, Cosmos e Senador Vasconcelos compõe a região administrativa de Campo Grande, periferia da cidade do Rio de Janeiro, possui o 12º menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH 0,747, ano 2000), sendo o 115º colocado entre 126 regiões analisadas no município do Rio de Janeiro.

A partir dos anos 1960 esta região foi palco de numerosos assentamentos habitacionais que modificaram profundamente os modus vivendi da área. Como toda periferia citadina carioca, a Zona Oeste vivenciou o não reconhecimento de suas centralidades urbanas e foi vítima da usual ausência estatal.

Na fronteira da ordem republicana se ergue vigorosamente o que se entende por poder paralelo através da atuação de diferentes organizações criminosas.
A região de Campo Grande, densamente ocupada, onde impera a ausência da prestação de serviços por parte do estado e a crescente desigualdade social. Neste universo onde vigora a violência praticada pelo poder paralelo podemos observar a crescente ocorrência da intolerância religiosa, mormente praticada por evangélicos neopentecostais contra praticantes das religiões de matriz africana como umbandistas e candomblecistas.(SANTOS, 2016)

O CEMMW é um equipamento educacional com poucos anos de existência, inaugurado em 5 de fevereiro de 2014.Vale dizer que a experiência pedagógica a ser refletida se efetua desde os primórdios de sua existência. É claro que o fazer pedagógico é eterna busca de construção cognitiva, há de ser desenvolvida dialeticamente, sendo assim, mesmo afirmando a mesma proposta metodológica, se reinventa ano a ano.

Importante ressaltar que o CEMMW foi construído num espaço doado ao Estado do Rio de Janeiro, em forma de comodato, pelo Instituto Metodista Ana Gonzaga. O colégio traz o nome do missionário Mário Way, metodista americano que atuou em diferentes continentes em prol do respeito aos direitos humanos e da melhoria das condições de vida do próximo. De forma muito interessante o colégio se localiza na frente da Praça dos Pretos Velhos de Inhoaíba.

Neste espaço franja da centralidade urbana carioca, no decorrer do calendário pedagógico da rede estadual de ensino, a partir de 2014 o nome de Tio Quincas e Tia Maria fazem parte do fazer educacional nas aulas de história no ensino médio regular e na educação de jovens e adultos.

A prática dialógica de ensino a partir da lei 10639/2003
Entendendo a prática educadora como caminho de eterna construção, propomos a análise da prática específica de um professor, em consonância com o projeto político pedagógico do CEMMW, que como caçula da rede de ensino investe a partir da prática dos seus docentes ricas experiências cognitivas.

No que tange ao trato interdisciplinar, a História e Cultura Afro-Brasileira é lugar de destaque na praxis de numerosos professores deste ambiente de saber, que muito além das atividades das semanas da consciência negra nos meses de novembro, reverberam em todo período letivo a abordagem do legado civilizatório africano na construção de nossa nação. Feito ação estruturante desta vontade coletiva, no mês de agosto de 2018,um conjunto de professores inauguram o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros do CEMMW.

A prática pedagógica que pretendemos refletir diz respeito aos primeiros momentos de contato entre o educador e seus estudantes. Logo após do momento dedicado ao acolhimento e da dinâmica diagnóstica do grupo, quando o educador se apresenta e convida a turma a participar de uma dinâmica em grupo, onde os presentes respondem quatro perguntas, quais sejam: seu nome, sua idade, seu local de moradia e seu propósito de vida.

Na proposta em voga os estudantes são indagados quanto ao conceito de história. A partir das intervenções dos estudantes apontamos conceitualmente a Ciência da História, seus princípios metodológicos, incluindo o uso das fontes materiais, escritas e orais. A aula de história neste momento se transforma numa oficina historiográfica.

Enfatizamos o entendimento da história enquanto ciência que estuda a ação do homem ao longo do tempo, da não neutralidade da transmissão do conhecimento e da compreensão de que todos homens são agentes da história.

A partir deste momento os estudantes são provocados a desenvolverem um exercício hipotético, qual seja: o convite por parte da Secretaria de Estado de Educação às escolas da rede a elaborarem a história dos bairros em que se situam.
A empreitada da pesquisa sobre a história de Inhoaíba é induzida mediante o incentivo do fazer historiográfico, respeitando a metodologia científica e a partir da busca das fontes históricas.

Remontando o período pré-colonial, onde os donos da terra eram os grupos étnico linguísticos tupi-guarani, buscamos entender a origem do nome do bairro, fruto da contração de duas palavras tupi-guarani: nhu (campo) e ahyba (ruim). O nome em si, se manifesta enquanto fonte escrita mas também oral por ter se perenizado a partir da tradição indígena fundada na oralidade.

Em seguida o professor sugere ao grupo uma visita ao Museu Nacional da UFRJ, no sentido de buscar informações junto aos estudiosos desta instituição referentes aos estudos arqueológicos e antropológicos realizados no bairro e na região. Infelizmente com o advento catastrófico do recente incêndio o argumento da dinâmica buscará outros acervos e centros de estudos como o Instituto de Arqueologia Brasileira e o Museu do Índio. Destacamos neste momento o necessário relacionamento que o historiador deve assumir frente as outras áreas do saber como arqueologia, antropologia e linguística.

Adentrando no período colonial e imperial, onde o uso da mão de obra escrava era base da economia, suscitamos a busca das evidências do passado que comporão o fazer historiográfico dedicado a Inhoaíba. A busca das fontes nos remete necessariamente aos acervos episcopais haja vista o período em questão ter, dentre outras questões, se caracterizado pela relação intrínseca entre o Estado e a Igreja Católica Apostólica e Romana. Grande parte dos registros se efetivavam no ambiente católico. Desta forma, os registros de batizados, de óbitos e de testamentos se davam nas paróquias. No caso das terras de Inhoaíba muitas fontes podem ser encontradas nos acervos da Diocese Metropolitana do Rio de Janeiro assim como no espaço da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro em Campo Grande.

Além da busca de fontes escritas a pesquisa não pode desprezar a dimensão do fazer arqueológico no desafio em questão pois muitas evidências materiais se apresentam ao observador apurado.

Avançando no exercício hipotético o educador sugere aos estudantes o reconhecimento do entorno do colégio, em especial, da praça que está do outro lado da avenida. Que praça é esta? Qual é o seu nome? Quais são os seus componentes?

Daí surge um rico universo a ser investigado, a Praça dos Pretos Velhos, é um dos poucos espaços públicos que reverenciam o legado civilizatório afro-brasileiro na construção do nosso país.

A Praça dos Pretos Velhos foi inaugurada no dia 13 de maio de 1958, durante as comemorações dos 70 anos da Lei Áurea, o monumento principal do equipamento em questão foi criado pelo artista Miguel Pastor, patrimônio pioneiro no que tange ao reconhecimento do legado civilizatório afro-brasileiro na cidade. Neste momento histórico estavam presentes o então prefeito Negrão de Lima, o escultor e o Tio Quincas antigo morador do bairro eternizado na praça na forma de escultura.(DIAS,2014)

No ano de 1959, segundo informações fornecidas pela Associação de Proteção aos Amigos e Adeptos do Culto Afro-brasileiro e Espírita (APAACABE):

“Miguel Pastor lançou um manifesto que era a preparação para a tomada da praça pelos umbandistas, em 1960, o escultor convidou mais de 30 terreiros, porém só apareceu um, pois o ambiente era de perseguição a tendas espíritas.  Mesmo assim, o monumento foi consagrado perante duas mil pessoas” (DIAS,2011)

A presença de Miguel Pastor (1930-1987) na municipalidade carioca é deveras significativa, em especial na Zona Oeste, principalmente em Campo Grande. A obra deste autodidata, que através da escultura nos apresenta importantes dimensões da história do povo brasileiro, com destaque na contribuição afrodescendente na construção do nosso país, dentre elas a Praça dos Pretos Velhos onde  está a escultura de Tio Quincas (1958) e o Monumento ao Ventre Livre (1960), ao lado do Teatro Artur Azevedo, onde ao lado figura um Painel com as imagens dos principais abolicionistas(1960).Neste momento o educador destaca a importância de observarmos as fontes matérias existentes nos espaços públicos que poderão agregar valor a nossa pesquisa.

A partir da pesquisa dos estudantes outras informações emergem dos universos pesquisados como a publicação da Lei nº 476 de 14 de dezembro de 1983, assinada pelo Prefeito Marcelo Alencar:

“Art. 1º - Fica incluída na parte fixa do Calendário Oficial de Certames e Eventos da Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro –Riotur . . . a Festa Cívico-Religiosa do Preto Velho, realizada, anualmente, aos dias 13, 14 e 15 do mês de maio, junto ao Monumento ao Preto Velho, na Praça do Preto Velho, em Inhoaíba. ” (BRASIL,RIO DE JANEIRO,1983)

Como salientado anteriormente a intolerância religiosa vigora na Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro, valendo dizer que os componentes da praça foram objeto de tentativas de destruição, levando a Administração Regional de Campo Grande retirar a escultura de Tio Quincas e reinstalá-la somente às vésperas dos festejos de Preto Velho, no dia 13 de maio de cada ano, tendo sido instalada definitivamente no ano de 2014, após 56 anos da inauguração da praça.

O equipamento público em questão possui diversos elementos, dentre os quais podemos citar: a)  um obelisco principal de 8 metros de altura, revestido de pastilhas, onde uma escultura de Miguel Pastor em bronze em tamanho natural representa Tio,  b) uma construção em alvenaria onde no interior existe uma escultura de Tia Maria do Sul de Minas em argamassa de argila em tamanho natural sentada em um pequeno banco de madeira, com uma criança em seu colo, colocada no local em 1969, c) o piso da praça é feito com pedras portuguesas pretas e brancas, existindo entre o obelisco de Tio Quincas e a construção de Tia Maria o desenho de um ponto de umbanda característico do culto aos Pretos Velhos, pertencente ao Rei Congo, originário do terreiro de mãe Apolinário, da cidade de Porto Alegre, terra natal do escultor e d) o cruzeiro. (DIAS,2014)

Neste momento da aula, diferentes reações acontecem na sala de aula, alguns estudantes se referem a praça como lugar dos macumbeiro, agindo preconceituosamente, enquanto outros tomam uma postura de curiosidade quanto a relação da praça com o exercício em desenvolvimento. Desta forma o educador investe na pesquisa da história e do significado dos elementos componentes da praça em questão.Trata-se então de entender o significado de vários elementos do lugar, em especial de Tio Quincas e da Tia Maria do Sul de Minas.

Tio Quincas, Joaquim Manuel da Silva, nascido em 1º de janeiro de 1854 e falecido em 1963, viveu por 109 anos, cinco anos depois da inauguração do monumento. Filho de ex-escravos, viu o bairro de Inhoaíba nascer e se desenvolver aos poucos, desde o laranjal até o início da urbanização como nos informa o material produzido pela Associação de Proteção aos Amigos e Adeptos do Culto Afro-brasileiro e Espírita.

Gozava de grande popularidade na região, pela sua autoridade moral e conduta, era um grande conhecedor da fitoterapia e fazia uso deste conhecimento na promoção da saúde de todos que lhe procurassem.

Seus descendentes residem no bairro e sua lembrança se eterniza de maneira carinhosa e respeitosa na memória coletiva local. É lembrado como uma pessoa alegre e festeira,incentivadora e patrocinadora das brincadeiras carnavalescas.
O legado de Tio Quincas não refere a prática religiosa de matriz africana mas ao seu exemplo cidadão e enquanto praticante da cura a partir do uso das plantas medicinais.

Tia Maria do Sul de Minas, Maria Querina, foi uma escrava cortadeira de cana que foi trazida do Sul de Minas para Inhoaíba para ser ama de leite, criança esta representada na sua imagem.

A presença de Tia Maria foi tão significativa que após seu falecimento a mesma foi consagrada enquanto entidade espiritual da umbanda, na linha dos pretos velhos. Sua adoração se relaciona principalmente ao zelo pelas crianças.
Desta forma as duas estátuas são tratadas como fontes históricas materiais que comporão o exercício em questão. Adiante a dinâmica adentra no período republicano até chegar aos dias atuais.

O território e os valores civilizatórios africanos
Pretendemos neste texto ressaltar a importância de considerarmos em nossas aulas as evidências do passado existentes no entorno das nossas escolas. Tal relevo se multiplica quando relacionamos com o legado civilizatório africano na formação do nosso povo. (CUNHA JR.2010)

A Praça de Inhoaíba nos apresenta numerosas possibilidades de estudo da história dos afro-descendentes, em especial na abordagem de dois valores civilizatórios quais sejam a espiritualidade e o conhecimento da natureza.

De um lado o contributo de Tio Quincas imortalizado na memória coletiva do bairro enquanto promotor da saúde a partir do conhecimento das plantas medicinais, e do outro lado Tia Maria do Sul de Minas que transcendeu até os dias atuais enquanto  elemento de devoção espiritual nos terreiros de umbanda.
Trabalhar estes elementos em sala de aula pode ocasionar reações preconceituosas beirando a possíveis debates acirrados, cabendo ao educador induzir o bom debate em busca do respeito às diversidades e a necessária sociabilidade. Num cenário onde crescem os casos de intolerância religiosa  o trato deste assunto ganha especial importância.

Destarte propomos neste texto a partir do relato de uma experiência didática explicitar o rico universo a ser trabalhado na história do entorno do equipamento escolar na busca das evidências dos valores civilizatórios africanos como preconiza a Lei 10.638/2003.

Referências
Emanoel Campos  Filho, professor da rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro, Colégio Estadual Missionário Mário Way (CEMMW),  bacharel e licenciado em História na Universidade Federal Fluminense, mestrando do Programa de Pós Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Laboratório de Experiências Religiosas  (LHER) do Instituto de História da UFRJ, atuando na Coordenadoria de Experiências Religiosas Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerância Religiosa (ERARIR).

BRASIL, Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de 2009.

BRASIL, RIO DE JANEIRO, Lei nº 476 de 14 de dezembro de 1983.

BRANDAO, A. P. (Org.) ; TRINDADE, Azoilda L. (Org.) ; BENEVIDES, Ricardo. (Org.) . Saberes e Fazeres, V. 1: Modos de Ver. 1a.. ed. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2006.



CUNHA JR., Henrique. Tecnologia africana na formação brasileira. Rio de Janeiro:CEAP; 2010.

DIAS, VERA. Inventário de Monumentos do Rio de Janeiro, organizado pela arquiteta Vera Dias, 2014. http://www.inventariodosmonumentosrj.com.br/index.asp?iMENU=catalogo&iiCOD=972&iMONU=Paizinho%20Quincas

DIAS, VERA. As histórias dos monumentos do Rio, 2011.

MANSUR, André Luís. O velho oeste carioca. Volume 1.  Rio de Janeiro: IbisLibris, 2008.

SANTOS, Ivanir dos (Org.). Edição bilíngue – Rio de Janeiro: Klíne: CEAP, 2016.





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