A EDUCAÇÃO DIFERENCIADA COMO MARCA
DO PROTAGONISMO INDÍGENA
As
décadas de 1970-80 foram marcadas por um forte protagonismo por parte de vários
povos indígenas, a fim de ir contra os mecanismos de tutela, impostos pelo
Estado Ditatorial Brasileiro, que, por sua vez, eram legitimados pelo Estatuto
do Índio, de 1973 (ainda em vigor nos dias atuais). Um desses dispositivos
usados foi o Termo de Emancipação, documento que dava ao indígena o status de
cidadão, contudo, tirava dele o direito de lutar com seus iguais pela terra e
pelo manejo sustentável dos recursos naturais, conforme ilustra Marcos Terena
(1981), uma das maiores lideranças do Movimento Indígena nos nossos dias. Terena
ainda expõe o fato de indígenas terem que esconder sua origem étnica, para não
sofrerem perseguição da Fundação Nacional do Índio (FUNAI):
“Um detalhe importante para aqueles que conseguem viver em estado de alto grau de aculturação, é o fato de muitos desses se verem obrigados a esconderem sua identidade de indígena por temerem uma represália do órgão tutor com a proposta de ‘emancipação’, ou temendo uma intervenção do mesmo órgão para bloquear o desenvolvimento profissional que adquiriu por seus próprios meios e esforços.”[TERENA, 1981, p. 39]
Em
meio a este ambiente adverso, começaram a surgir Organizações Não
Governamentais (ONGs) indigenistas como: o Centro de Trabalho Indigenista
(CTI), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), dentre outras, assim como
comunidades indígenas passaram a se articular, com o intuito de requerer do
Poder Público, direitos sociais de que tanto ansiavam e anseiam. Ademais, é por
força desses movimentos, dentre outros, que foi elaborada a Constituição
Federal de 1988, também chamada de Constituição Cidadã (a primeira a reconhecer
o indígena como cidadão), reconhecendo vários direitos, como o de organização
de uma educação indígena, diferenciada e bilíngue, conforme consta no art. 210, § 2º: “[...] assegurada às comunidades indígenas também a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.
Como
marca do protagonismo indígena, começaram a ser criadas escolas diferenciadas
dentro do território nacional, que, por sua vez, podem reforçar a coesão
cultural e a identidade étnica, dando um novo impulso para a reivindicação da
demarcação de territórios, como ocorre na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (estado
de Roraima) em que, as comunidades étnicas estão
empenhadas contra o ato governamental que instituiu o Marco Temporal (2014),
que consiste no direito de posse da terra aos indígenas que comprovarem sua presença
em determinado território no momento de promulgação da atual Constituição
Federal, ou que podem comprovar resistência à ocupação não indígena. Este
contexto pode ser mais bem entendido, a partir da leitura da obra ‘Direitos dos
Povos Indígenas em Disputa’. Trata-se de uma compilação de artigos, organizados
por Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa.
Ao
pensarmos no Marco Temporal, podemos nos perguntar:
__O
que fazer em situações em que houve a expulsão de contingentes populacionais,
por meio da violência provocada pelo não indígena?
Como
exemplo, podemos citar a obra do já falecido John Monteiro ‘Negros da Terra:
índios e bandeirantes na
origem de São Paulo’, em que ele argumenta que os sertanistas ou paulistas (também
chamados: Bandeirantes) foram grandes agentes de desagregação de núcleos
familiares, no período colonial. Já no período contemporâneo, as comunidades
indígenas sofrem com o avanço das lavouras de soja e com a exploração ilegal de
recursos minerais e de madeiras com grande valor agregado.
Num
momento em que a questão indígena é preocupante, entra em cena (novamente) a
educação diferenciada, pois ao se reconhecer como grupos sociais, as diversas
comunidades podem e devem requerer de nossos representantes legais, direitos
que são garantidos por força de lei, mais precisamente no art. 231, da
Constituição Cidadã:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Não
é uma tarefa fácil, se pensarmos que, em 2017, houve uma Comissão Parlamentar
de Inquérito, marcada por não dar voz às lideranças indígenas, tampouco, para
seus aliados, sendo criticada por propor a revisão de atos de demarcação de
terras, postos em prática pela FUNAI e por ter como presidente e relator desta
Comissão, membros da chamada Bancada Ruralista, lembrando que, até o fim de 2018,
dos 513 deputados em atividade no Congresso Nacional, 200 deles são pertencentes
a este segmento.
Em
meio a este ambiente de incertezas, torna-se imperativa a continuidade da
articulação das diversas lideranças do Movimento Indígena para guiar seu
próprio processo educacional, mantendo a reivindicação da posse de territórios
que lhe são legítimos, seja por meio de parcerias com ONGs, com objetivos
afins, seja por intermédio de associações internas, como a Associação Indígena
Terena de Cachoeirinha (AITECA). Além disso, é necessário ampliar o número de
instituições de ensino diferenciadas, pensadas pelo indígena e não para o
indígena. Podemos refletir sobre esse ponto, articulando-o com a reflexão
realizada por Maria Inês Ladeira (2003), uma das fundadoras do CTI, por ela
expor entraves como a inadequação do calendário escolar oficial às atividades
realizadas dentro das aldeias, assim como a carência de livros didáticos que
retratem as demandas locais e que apresentem as diversas etnias como
protagonistas da História:
“[...] necessidade de obediência às normas da SEE (Secretaria Estadual de Educação) que impõem normas para a edificação da escola, planejamento, calendário escolar e estrutura pedagógica não diferenciados; rotina diária escolar que não prevê tempo para as outras atividades cotidianas na aldeia; falta de material didático específico (possuem ideias de materiais que falem sobre a aldeia, o ambiente, a região, espécies naturais, as políticas sobre a questão indígena, os direitos dos índios) [...]” – [LADEIRA, 2003, p. 38]
A partir da Fig. 01, podemos
visualizar a quantidade de escolas voltadas a uma educação indígena
diferenciada, em território nacional, tendo em vista o ano de 2012:
Fig. 01
De
fato, trata-se de um momento conturbado, todavia, é possível acreditar na forma
da educação indígena diferenciada. Como exemplo, cito o Povo Terena, que reside
em aldeias do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e no oeste paulista, pois essa
etnia possui muitos de seus membros formados em Pedagogia, dando aulas para a
própria comunidade e veem na educação um mecanismo de embate com o não
indígena. Ademais, os Terena chegaram a criar um livro didático de História, em
parceria com o CTI e o Ministério da Educação, cuja temática os insere na
História Nacional, tanto como guerreiros que atuaram do lado do Brasil na
Guerra do Paraguai quanto pela sua tradição agrícola (trabalho melhor essas
questões em minha monografia de fim de curso – ver referências). São exemplos
que podem e devem ser praticados dentro de outras comunidades indígenas, tendo
em vista as demandas locais. Finalizo este texto apresentando um dado positivo,
presente no Censo Censitário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(Censo – IBGE 2010), no qual houve um aumento significativo de pessoas que se
autodeclararam indígenas. Um ponto que permite pensar na eficiência, eficácia e
efetividade que a educação indígena diferenciada pode trazer, como definidor de
identidades, de resgate de tradições culturais e de reivindicação de direitos
sociais.
Fig.
02
Referências
Luciano Araujo Monteiro é graduado em História (UNIFESP), pós graduando
em Gestão Pública (UNIFESP) e mestrando em História (UNIFESP). Atua como
Assistente de Gestão e Políticas Públicas pela Autarquia Hospitalar Municipal.
BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Estatuto do Índio.
BRASIL. Constituição da
República Federativa do Brasil. São Paulo: Imprensa oficial. 2011.
CUNHA,
M. C. da; BARBOSA, S. (org.). Direitos dos povos indígenas em disputa. São
Paulo. Editora Unesp, 2018.
LADEIRA, M. I. Educação Escolar Indígena em São Paulo: alguns elementos
para reflexão. Caderno Temático de Formação I. Leitura de Mundo, Letramento e
Alfabetização: Diversidade Cultural, Etnia, Gênero e Sexualidade. São Paulo, set. 2003, p. 37-39.
MONTEIRO, J. M. Negros
da Terra: índios e bandeirantes na origem de São Paulo. São Paulo. Cia das
Letras. 1994.
MONTEIRO,
L. A. História do Povo Terena: o livro didático (2000). UNIFESP. Guarulhos: 2014, 46 p. In
TERENA, M. M. O problema de fazer parte da
comunidade brasileira enquanto brasileiros e enquanto membros de determinada
etnia. Cadernos Ceru, São Paulo, n. 16, 1981, p. 33-45.
Prezado,
ResponderExcluirGostaria de enfatizar a relevância da pesquisa desenvolvida, sobretudo se considerarmos o significado da educação indígena como um fator de consolidação social e territorial dos povos indígenas. Neste sentido, propor uma educação que valorize a identidade das várias etnias existentes no Brasil pode ser considerado um desafio, mas também deve ser compreendida como uma possibilidade de valorização dos modos de ensinar e aprender dessas populações.
Parabéns pelo estudo.
Megi Monique Maria Dias.
Prezada Megi,
ResponderExcluirFico contente que tenha apreciado o meu texto. Aproveito para complementar que a educação indígena diferenciada torna-se cada vez mais imperativa nos nossos dias, pois, a atual reforma do ensino médio desobriga o ensino relacionado à cultura indígena e de afrodescendentes, um ponto que vai contra as diretrizes da lei nº 11.645, de 10 março de 2008.
Abraço
Luciano Araujo Monteiro
Olá, Luciano Araujo.
ResponderExcluirÉ de suma importância pensar a constituição das escolas voltadas à educação indígena diferenciada associada aos movimentos políticos, tendo em vista a educação ser um ato político, ainda mais para esses povos que vêm enfrentando diversas questões ao longo de sua trajetória. Pesquiso na área de História Indígena no período colonial na Capitania do Rio Grande do Norte, e atualmente já vemos um movimento muito forte de atuação dessas escolas em nossa região. Minha pergunta vai em direção à propagação desse tipo de ensino no Brasil, portanto, gostaria de saber se em sua pesquisa você consegue mapear as regiões em que a educação indígena diferenciada está incidindo com maior força e se você encontrou outros casos parecidos com os do povo Terena, no sentido de articulação e engajamento ao ponto de elaboração de um material didático próprio.
Victor André Costa da Silva.
Olá Victor
ExcluirAtualmente eu desenvolvo minha pesquisa no mestrado acadêmico, analisando as obras didáticas e paradidáticas de História, desenvolvidas com o apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Dado o escopo do meu tema (que não envolve pesquisa de campo) eu não realizei um mapeamento para visualizar em que medida a educação indígena diferenciada é mais efetiva ou não em diversas localidades brasileiras, contudo, posso dizer que, em âmbito local, o CTI desenvolve parcerias junto aos Guaranis do estado de São Paulo, que resultaram em obras didáticas importantes para essa etnia. Sei que há uma aldeia em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo em que a comunidade Guarani faz uso desse tipo de material. Além disso, no Vale do Rio Silveira (parte litorânea do estado paulista) cheguei a visitar no ano passado uma aldeia Guarani onde há uma escola estadual, na qual os docentes são indígenas. Pelo meu acompanhamento, essa etnia deposita grande fé na educação diferenciada como mecanismo de embate com o não indígena, pois é constante a disputa por terras entre eles e os representantes do Poder Público, tendo como maior exemplo, nos dias atuais, a articulação dos governos estadual e federal para diminuir o território habitado por Guaranis no Pico do Jaraguá (zona oeste da cidade de São Paulo), a fim de satisfazer interesses econômicos.
Luciano Araujo Monteiro