Jennifer Kessie Ramos Figueiredo


A ESCOLA ENQUANTO ESPAÇO DE FORMAÇÃO: O GBEIRU NAS ESCOLAS


O presente artigo visa discutir a articulação dos negros no processo de diáspora, mais precisamente se pretende entender as reminiscências da escravização do século XIX no centrando-se em Salvador. Neste sentido, é relevante trazer a imagem do negro Gbeiru, responsável por fundar o quilombo na região do Cabula representando a busca pela liberdade e o fim de uma instituição antiquíssima no Brasil, para compreender como as heranças negras se integram dentro das comunidades escolares, principalmente, no antigo Quilombo. Destarte, se utiliza metodologicamente a DBR, uma forma de pesquisa-ação que visa inserir o estudante como ativo na construção e coleta dos dados, ou seja, o mesmo adquire a postura de co-autor dos estudos estabelecidos.  Além disso, a pesquisa pretende perceber as dinâmicas da lei 10.639/2003 e sua importância dentro dos espaços escolares, justamente, pelo bairro contar com a presença de um alto contingente de sujeitos negros. Com base nos dados levantados fora percebido que os estudantes desconhecem a História de seu bairro e sua importância enquanto resquícios das resistências e lutas negras, felizmente isso não fora unânime, pois, os moradores mais antigos trazem em suas falas as estórias e Histórias do negro da região de Oió, responsável por estabelecer no entorno do Cabula um espaço para os negros se refugiarem do sistema opressor patriarcal.

Os percalços iniciais no Brasil
Desde os tempos mais pretéritos da História a escravidão se consolida como um processo extremamente lucrativo para os países europeus, com ênfase nas metrópoles: Portuguesa e Espanhola que ao colonizar as Américas aumentaram demasiadamente o fluxo do tráfico negreiro. Sem dúvida, Portugal se configurou como maior articulador das idas e vindas dos escravizados para o atlântico sul, findando com as estórias dos sujeitos que outrora eram socialmente importantes em seus países para no Brasil e nas Américas, não serem nem vistos como cidadãos.

Majoritariamente, diversas características intensificaram a chegada dos negros na América Latina, desde a morte dos indígenas até a necessidade de uma mão de obra mais “específica” para certos serviços. A partir das prerrogativas apontadas por Gilberto Freyre (2004) é visto que há uma tendência a romantização das mazelas escravocratas, tal apaziguamento desse triste sistema perdura nos livros didáticos e ambientes escolares, onde o negro adquire postura de passividade e secundário no processo formativo do País. Dessa forma, por muito prevaleceu os estudos acerca dos sujeitos africanos sob uma via descontextualizada, desconexa das dinâmicas e conjunturas históricas brasileiras.

Neste sentido, a prática educativa se consolidará numa perspectiva eurocêntrica durante o século XX na sociedade brasileira, tal panorama começa a se modificar no início do século XXI quando ocorre a promulgação da lei 10.639/2003 que pretende trazer a imagem do sujeito negro para a educação com um segmento de maior valorização do ser negro, respeitando suas práticas culturais, religiosas e seu papel social. Contudo, pensar nessa nova política da margem para tecer diversos apontamentos: será que essa lei é efetivada dentro das salas de aula? As discussões são pertinentes?

Dessa forma, é preciso adentrar nos ambientes escolares para entender as dinâmicas do ensino de História, nas escolas públicas de Salvador, mais precisamente na região do Beiru, como forma de compreender a efetivação e necessidade da lei para esses jovens que se inserem num contexto histórico de lutas e resistências dos que se opunham ao controle senhorial vigente na sociedade escravocrata.

O Beiru e a Salvador do XIX 
A Bahia do século XIX pleiteava de divisões em freguesias, sendo essas uma espécie de “bairros”. Segundo Nascimento (2007) nesta época a cidade carecia de saneamento básico e iluminação decente na maioria das freguesias, sendo o panorama modificado, somente, com a necessidade de melhorar o local. Dessa perspectiva, há relativa disparidade em desenvolver a cidade de forma nivelada, assim algumas freguesias e distritos irão se desenvolver mais que outras.

Nessa configuração é possível sinalizar a situação do segundo distrito de Santo Antônio Além do Carmo, atual região do Cabula que abrange os 17 bairros ao entorno do miolo de Salvador. Socialmente, essa localidade não era bem vista, como pontua Martins (2017): “subcultura particular, com padrão de vida inferior, um assentamento espontâneo, desordenado, de baixa renda, ao lado de uma população residente em alguns conjuntos habitacionais–assentamento programado que se opõe ao outro – produzindo um espaço vivencial conflitivo, conturbado” (SALVADOR, 1985, p. 60 apud MARTINS, 2010, p. 119).

Essa marginalização espacial ocorre em decorrência da região ser um antigo quilombo, desde esse período e, por consequência, contar com a presença de um elevado número de negros libertos ou impostos ao sistema escravocrata. Esses ambientes de resistência se configuram como os mais primordiais meios de tecer a fuga, como discorre (SOUZA, 2016) sendo o mais famoso o dos Palmares, situado em Pernambuco. O quilombo do Cabula permanece resistindo até sua destruição pelo Governador Conde da Ponte como é estipulado nos estudos de Martins (2017).

Neste segmento, o Beiru se insere como um atual quilombo urbano, desde sua fundação com o negro Gbeiru, vindo da Nigéria, Oyó para ser inserido no sistema escravocrata, na família dos Garcia d’Ávila, esse sujeito foi apenas um dos tantos outros que saíram de suas vidas para adentrar na morte cultural. Sua postura gerou muito animosidade com a família dos senhores que lhe concedeu um pedaço de terra (hoje corresponde ao bairro Beiru/Tancredo Neves). Com essa fazenda, o negro formou um espaço de abrigo para negros, indígenas e fugitivos que permaneceu até sua morte.


Metodologia
Para elaborar as pesquisas nos ambientes escolares se pretende trabalhar melhor acerca da formação do bairro, utiliza-se da metodologia Design-Based Research – DBR ou de modo mais simplificado: Pesquisa-ação. Tal método se articula a partir de um problema posto e através da participação de todos os sujeitos envolvidos, de forma coletiva e colaborativa, ou seja, todos constroem a pesquisa.

Essa forma de nortear as pesquisas se caracteriza como uma abordagem teórico-metodológica, essencialmente, construtivista por ocorrer a partir da aplicação prática nas comunidades de maneira que os resultados não se constituem sem a atuação dos sujeitos que são parte do objeto de estudo. Segundo SOUZA (2016) essa metodologia se alicerça nos ideais  bricolagem e métodos investigativos díspares, ainda com base no autor supracitado a mesma dialoga com temáticas diversas, tais quais: o sócio-construtivismo praxiologia e o pensar histórico.

O espaço escolar e as memórias coletivas
A partir do breve contexto citado nas páginas anteriores, buscou-se por meio dos trabalhos elaborados dentro do grupo de pesquisa da UNEB “Sociedade em rede, pluralidade cultural e conteúdos digitais educacionais” coordenado pelo professor Alfredo Eurico Rodrigues da Matta, tendo como subprojeto “conteúdos digitais nas escolas” que pretende articular o conhecimento histórico com os saberes discentes. Dessa forma, por se tratar de História de um antigo quilombo urbano a lei 10.639/2003 é de extrema relevância para os estudos feitos durante a elaboração da pesquisa.

Para trazer as conjunturas da lei dentro do espaço escolar, num primeiro momento se considerou o saber discente sobre as estórias do Gbeiru e sua relevância dentro da comunidade. A escola em questão foi o Colégio Estadual Helena Magalhães, parceira dos projetos do grupo de pesquisa, os discentes variavam em idades dos 12 aos 14 anos com as turmas do 9° C. Estes, que estão em processo de formação ficaram responsáveis por preencher fichas que pontuavam questionamentos desde sua identificação étnica até as festas populares que conhecia no Bairro. Posteriormente, deveriam entrevistar moradores antigos para responder algumas informações sobre cultura, religião, festividades e etc.

Tal atividade proposta dialoga muito com a lei 10.639/03 que obriga o ensino afro dentro dos ambientes educacionais, assim ao trazer a imagem do negro sob uma ótica de resistência e não passividade, se tem uma arma valiosa nas mãos para fugir de um ensino de História eurocêntrico e assim dialogando com as histórias locais. Essa lei implicou em modificações na LDB: “Art.26-A- Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura AfroBrasileira.”

“Parágrafo Primeiro - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.”

“Parágrafo segundo - Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras.”

“Art.79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra.’”

A partir dos tópicos trazidos pela LDB, difundir a herança do GBEIRU e consolidar mais nas escolas as perspectivas discentes sobre seu local de vivencia e dialoga com a valorização do negro, que por muito foi marginalizado e posto na condição de passivo as mazelas do sistema. Além de quebrar (ou ao menos tentar) com as discriminações tanto de discentes quanto de docentes, contexto sinalizado por Cavalleiro (2005) em que as práticas educativas que visam findar as divergências sociais de cor são barradas por diversos entraves, sendo uma delas o preconceito das outras crianças para com as negras.

O Beiru como resistência educativa
Pela carga histórica o bairro Beiru, tem professores que se debruçam a valorizar essas heranças bem como reforçar a importância do negro dentro da sociedade. Tal panorama adquire mais relevância quando se pensa que as escolas parceiras do grupo de pesquisa são formadas por sujeitos majoritariamente negros. Essa presença negra nos faz recorrer as pontuações de Martins (2017) onde a mesma pontua que essa forte atuação dos negros na região é resquícios do contexto histórico dos Quilombos, áreas formadas por negros: escravizados, libertos ou indígenas que visavam fugir as amarras escravocratas.

Pensar num ensino articulado com a formação da identidade negra enquanto importante é algo complexo, difícil, mas necessário.  Pois a via de marginalização dos negros é muito latente como traz Munanga: “[...] O preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre os alunos de diferentes ascendências étnicoraciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado” (MUNANGA Apud CAVALLEIRO, 2005: 70).

Deste modo, por meio do trabalho proposto pelo grupo de pesquisa dentro do Colégio Estadual Helena Magalhães se pretende fugir as prerrogativas centradas numa linha europeia e considerar as singularidades do bairro, que carrega características individuais até mesmo em seu nome, como expõe a Associação Comunitária e Carnavalesca Mundo Negro (2007, apud Teixeira et al, 2009, o nome BEIRU originário da língua africana yourubá (sendo tradicionalmente escrito GBEIRU). 

Assim, o estudo dos miolos dentro dos ambientes escolares é primordial, sendo dessa maneira os projetos desenvolvidos nas escolas primordiais e bastante efetivos para promover o reconhecimento da identidade, diminuição dos preconceitos, racismo e disparidades sociais. Em muitas falas logo no início do projeto, muitos alunos viam negativamente seu bairro, como um espaço apenas violento sem nada de bom e tantas outras coisas.

Obviamente, não se podem esquecer os pontos negativos, mas o intuito é pontuar a importância desse bairro como resistência, herança e articulação dos negros do século XIX-XX. A violência amplamente retratada pelos meios midiáticos não são falácias, mas em muitas propagandas é reforçado o Beiru como um ambiente de apenas riscos aos sujeitos. Sendo as saídas encontradas a criação de projetos por parte dos professores como meio de modificar essa perspectiva, assim a professora de História Veronica Gordiano, traz o projeto Beiru: “Um novo olhar” que desde 2014 levam os discentes na busca de autoconhecimento acerca da localidade que vivem.

Felizmente, o objetivo pretendido foi alcançado muitos discentes quebraram paradigmas que tinham em relação ao bairro bem como passaram a valorizar mais o ambiente que residem. Sendo de todas as fichas, as mais interessantes são a de jovens que nada conheciam de seu bairro, mas que ficaram curiosos para o conhecer melhor. Isso os motivou a buscar, conversar com os vizinhos, ir nos lugares que eram do cotidiano procurando as histórias.

Nessa perspectiva, os projetos feitos no CEHMA, dialogam demasiadamente com uma prática educativa voltada para Paulo Freire (1996) disserta acerca da mudança dos parâmetros tradicionalistas de ensino-aprendizado, centrado em aulas que não se articulam com os conhecimentos e saberes discentes, o que lhe causa distanciamento e o coloca como passivo na construção do conhecimento.

Conclusão
Sem dúvida, a História do Gbeiru e as dinâmicas do bairro hoje se configuram como tantas outras localidades e outros escravizados que sofreram com as mazelas dos sistemas escravocratas, sendo símbolo de luta e resistência do povo negro. Claramente, muitos passos e desconstruções foram galgados, mas há ainda tantas outras dinâmicas e situações que necessitam de reparos, no que se refere a busca de valorização do bairro.

Em suma, os apontamentos do educador Paulo Freire por um ensino contextualizado e que valorize as “leituras de mundo” se consolidam como essenciais para que se saia mais da teorização e adentre na atuação efetiva, promovendo nesses discentes uma visão sobre o Beiru/Tancredo Neves que os motivem e inspirem a preservar e valorizar o passado do bairro, bem como, os levem a valorizar e preservar seu espaço diário.

Fazendo com que os estudos acerca da escravidão adquiram outra ótica, fuja as proposições de uma análise negativa do sujeito negro e vise valorizar sua história, cultura, herança e importância para a formação da sociedade brasileira, bem como das Américas como um todo.


Referências
Jennifer Kessie Ramos Figueiredo é graduanda em História pela UNEB e Bolsista de Iniciação Científica.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São Paulo. IN: SECAD (2005: 65-104).

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 49ª edição. Global Editora. 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 1996.

MARTINS, Luciana Conceição de Almeida.   História Pública do Quilombo Cabula: Representações de resistência em museu virtual 3D aplicada à mobilização do turismo de base comunitária. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação da Bahia. Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, Salvador, 2017.

SOUZA, Antônio Lázaro Pereira de. Rpg digital instrumento pedagógico para o ensino da abolição da escravidão. Universidade Estadual da Bahia. Departamento de Educação. Programa de pós-graduação em educação e contemporaneidade, Salvador, 2016.



2 comentários:

  1. Como você acredita que trabalhar a memória Histórica do bairro pode auxiliar na construção de uma identidade étnica?


    Marcus Figueiredo

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  2. A identidade étnica precisa, na verdade, ser reconstruída. Para que assim, os alunos consigam identificar a necessidade de valorização da História local, dos seus espaços e o quão crucial salvaguardar a historicidade do bairro se faz crucial.
    Att, Jennifer Kessie Ramos Figueiredo

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