Mariana Schemberger Bardi


INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL: ANÁLISES DA PRÁTICA CULTURAL DENTRO DO ÂMBITO JURÍDICO


A prática do infanticídio indígena é questão recorrente em discussões de diversas áreas, que versam desde a busca por entender as motivações e desdobramentos da prática, até aqueles que pretendem adequar a prática cultural de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. Embora seja um tema discutido há muitos anos, o infanticídio indígena não é uma questão tratada com a devida importância no Brasil, mesmo recentemente quando o assunto foi explorado de forma breve pela mídia.

O processo histórico de formação do Brasil proporcionou uma cultura muito ampla e diversa, constituindo uma sociedade formada por múltiplas influências culturais. Embora os povos indígenas tenham consolidado sua cultura, é inegável o fato de que muitas de suas vivências são interpretadas de forma preconceituosa e estereotipadas. É reconhecida a importância da cultura indígena no Brasil e vários são os dispositivos legais que determinam expressamente o dever do Estado em defender e valorizar os aspectos culturais dos povos indígenas. Porém, são ainda esses indivíduos alvos de discursos que questionam e deslegitimam as suas práticas culturais. Como pondera Villares:

“(...)ainda hoje as crenças e religiões indígenas são ameaçadas por uma sorte de intolerâncias. A maior é o desprezo pela cultura indígena, suas crenças e manifestações religiosas. Esse menosprezo é fruto da visão do índio como ser inferior e primitivo. Reflete-se em atitudes intolerantes às cerimônias, festas, rituais, tradições, indumentárias e utensílios indígenas.” (VILLARES, 2009, página 331).

O infanticídio indígena é hoje questão recorrente e polêmica, que requer reflexões de diversas áreas do saber. Faz-se necessário um profundo entendimento sobre a prática, para ser possível oferecer soluções que estejam em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro ao mesmo tempo em que respeita e valoriza as práticas culturais indígenas.

O infanticídio indígena enquanto prática cultural
O termo ‘infanticídio’ tratado no artigo 123 do código penal brasileiro refere-se à conduta da mãe que mata o próprio filho, durante ou logo após o parto, por influência do estado puerperal. O infanticídio indígena aqui discutido não trata da previsão do código penal, visto que não é realizado apenas pela mãe em estado puerperal e porque a motivação para a morte da criança se dá por questões culturais do grupo indígena em que o indivíduo está inserido. Pela legislação, essa prática cultural indígena estaria tipificada como homicídio e não como infanticídio, levando alguns autores a adotarem outros termos (como sacrifício, por exemplo) para tratar a questão. Ainda assim, se mantém o termo infanticídio indígena nas discussões que aqui serão feitas por ser o mais frequentemente usado para abordar a questão.

“Independente de terminologias e nomenclaturas, o que vale aqui é impulsionar o debate que visivelmente ganha destaque na comunidade indígena nacional. Não se pode fechar os olhos e os ouvidos para a realidade que tem sido trazida à tona por aqueles que são os legítimos preservadores de sua cultura, como também de sua existência como nação. Ver o infanticídio indígena é deparar-se com uma problemática até bem pouco oculta para a sociedade em geral, para o sistema jurídico, e para muitos que ainda desconhecem essa realidade persistente em algumas etnias indígenas.” (CAMACHO, 2011, página 41).

O infanticídio indígena aqui discutido consiste em provocar a morte de crianças tidas como “indesejadas” pelo grupo indígena que está inserido. Os motivos são diversos, podendo ocorrer em casos de má formação física, filhos de mães solteiras, crianças gêmeas, sinais de alguma deficiência, entre outros. Essa prática não é realizada em todas as etnias e precisa ser analisada de acordo com o contexto cultural que é próprio a cada grupo que o realiza. Embora seja ainda comum em algumas comunidades a prática do infanticídio indígena, há indivíduos dentro desses grupos que são contrários a manutenção da prática, levando até alguns pais a atuarem contra a morte do próprio filho.

“A palavra infanticídio é derivada do latim infanticidiume significa morte de criança nos primeiros anos de vida. (...) Os motivos que levavam essas diversas sociedades à prática do infanticídio vão desde sua própria sobrevivência em função da escassez de recursos até a seleção de indivíduos considerados anormais, segundo critérios do grupo.” (CAMACHO, 2011, páginas 50 e 51).

O infanticídio indígena se configura como prática tradicional nociva que leva membros do grupo a cometer o homicídio quando a vítima está de acordo com determinados critérios. A motivação para a prática tem como base aspectos culturais próprios a algumas sociedades.

“A autora do crime, na maioria dos casos, é a mãe, porque, em geral, dá a luz sozinha e imediatamente, comete o homicídio. O homicídio de pessoas com deficiência parece ser a forma mais comum de infanticídio entre as tribos indígenas que ainda possuem tal prática.” (BARRETO, 2015, página 200).

Não são apenas os índios do Brasil que realizam práticas tradicionais nocivas. Outros lugares do mundo, com culturas muito diversas, também apresentam práticas que trazem prejuízos a determinados indivíduos, baseando-se em questões culturais. Um exemplo de prática tradicional nociva é a mutilação genital feminina, assunto muito discutido internacionalmente e que ainda ocorre em algumas sociedades.

“É possível afirmar que quase todas as culturas tiveram experiências de infanticídio e não apenas como casos isolados, mas como uma prática social. As razões, em geral, eram: planejamento familiar, a redução da população feminina, rejeição de filhos ilegítimos, incentivos econômicos, a eliminação dos deficientes, rituais de sacrifício e superstições.” (HORAN, 1982 apud BARRETO, 2015, página 196).

O infanticídio indígena ainda figura como manifestação cultural de algumas comunidades no Brasil. Há casos de crianças que foram poupadas da morte mesmo quando atendiam às características que justificariam a prática. Os casos dos bebês Sumawani e Iganani se tornaram referenciais para aqueles que buscam combater a prática do infanticídio dentro de comunidades indígenas. As duas crianças seriam abandonadas pelo grupo por terem nascido com características não aceitas, mas nos dois casos foram salvas por familiares e levadas para missionários que as encaminharam para tratamento médico fora do círculo indígena. Embora sirvam de referência para a luta contra a manutenção do infanticídio indígena, as ações destinadas a essas crianças foram fortemente criticadas por antropólogos e pela Funai (Fundação Nacional do Índio), por considerarem uma intervenção que trouxe impactos àquela cultura, além de violar previsões legais.

A prática do infanticídio indígena não é sempre tratada com a relevância necessária, sendo um tema que a sociedade não discute com frequência. Ao levantar o tema para discussão não se busca um julgamento aos indivíduos que tenham praticado ou venham a praticar o ato. Tratando-se de uma prática cultural é preciso entender que aquela comunidade o realiza por atribuir reais significados à realização dessa prática tradicional nociva, não cabendo nenhuma espécie de julgamento moral por parte dos indivíduos que não compartilham das mesmas referências culturais. Como sabiamente argumenta Corrêa: “(...) as práticas culturais só são inteligíveis no universo da própria cultura.” (CORRÊA, 2008, página 103). Aqueles que não compactuam dos mesmos referenciais não são capazes de compreender todas as motivações e significados que envolvem a prática do infanticídio indígena.

Infanticídio Indígena na atual legislação brasileira
A Constituição promulgada no Brasil em 1988 fixou expressamente garantias para que os povos indígenas pudessem expressar seus aspectos culturais. Além de garantir o exercício de sua cultura, determinou ainda ser obrigação do Estado proteger as manifestações culturais.

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”(BRASIL, 1988).

Ao longo do texto constitucional o Estado determinou várias garantias no que se refere ao direito à cultura aos povos indígenas, mas não tratou de questões que envolvessem práticas tradicionais nocivas, nem mesmo em outros dispositivos legais além da Constituição. Com isso, deixou de versar sobre questões que tratassem de práticas culturais que trazem prejuízos aos indivíduos e ferem outros direitos, como o direito à vida. Nossa atual lei maior não ousou impor normas jurídicas a questões como a do infanticídio indígena.

A Constituição de 1988 garantiu o pleno exercício de manifestações culturais ao mesmo tempo em que determinou o direito à vida como um dos direitos fundamentais, estabelecendo também, no artigo 227, ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à vida, colocando-a a salvo de qualquer forma de discriminação, violência, crueldade e etc. Garantir que todas as práticas culturais sejam preservadas sem interferências do Estado significa não se posicionar perante o infanticídio indígena e ferir o direito à vida. Caso optasse por medidas de intervenção, com intuito de garantir o direito à vida, estaria o Estado ferindo o direito à cultura?

“De um lado temos que a própria Constituição assegurou a reprodução cultural dos índios, abandonando a necessidade de assimilação e civilização dos mesmos, o que deveria excluir qualquer intervenção exógena na comunidade com fins de imposição cultural [e impor normas jurídicas externas é uma forma de dominação cultural que a Carta não ousou avalizar].” (FEIJÓ, 2015, página 82).

O projeto de lei 1057/07, conhecido como Lei Muwaji, trata sobre práticas tradicionais nocivas em sociedades indígenas no Brasil. O texto desse projeto de lei procura estender a garantia dos direitos fundamentais a crianças, adolescentes, mulheres e idosos vulneráveis que vivem em comunidades indígenas e tem seus direitos violados. Apesar de não tratar apenas sobre a questão do infanticídio indígena, foi esse o tema que mais causou polêmica no projeto que se encontra desde 2015 aguardando apreciação e parecer do Senado Federal.

O mencionado projeto de lei ficou conhecido como Lei Muwaji por referência a uma mãe da tribo dos suruwahas que, enfrentando as tradições culturais de seu povo, evitou a morte da filha que nasceu com deficiência. Embora encontre posicionamentos favoráveis ao que é proposto, esse projeto tem sofrido com a oposição de antropólogos, indígenas e outros indivíduos ligados à causa que o consideram o texto discriminatório, além de acreditarem figurar como uma afronta ao direito dos indígenas de expressarem livremente sua cultura.

Não há dispositivos legais que permitam a disponibilidade do direito à vida em virtude de manifestações culturais, sociais ou religiosas. Não se admite na Constituição em vigor que os pais ou responsáveis por uma criança a privem do direito de viver com dignidade para atender às práticas culturais de seu grupo. O projeto de lei 1057/07 não prevê punição para os indígenas que tenham praticado, ou que venham a praticar, o infanticídio indígena, mas estabelece medidas que busquem proporcionar vida digna a esses indivíduos, através do diálogo em direitos humanos, visando o abandono da prática através da conscientização. O artigo 2º da referida lei esclarece sobre quais práticas tradicionais nocivas busca tratar:

Art. 2º. Para fins desta lei, consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como
 I. homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores;
II. homicídios de recém-nascidos, em casos de gestação múltipla;
III. homicídios de recém-nascidos, quando estes são portadores de deficiências físicas e/ou mentais;
IV. homicídios de recém-nascidos, quando há preferência de gênero;
V. homicídios de recém-nascidos, quando houver breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão;
VI. homicídios de recém-nascidos, em casos de exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo;
VII. homicídios de recém-nascidos, quando estes possuírem algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais;
VIII. homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;
IX. homicídios de crianças, em caso de crença de que a criança desnutrida é fruto
X. de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por desnutrição;
XI. Abuso sexual, em quaisquer condições e justificativas;
XII. Maus-tratos, quando se verificam problemas de desenvolvimento físico e/ou psíquico na criança.
XIII. Todas as outras agressões à integridade físico-psíquica de crianças e seus genitores, em razão de quaisquer manifestações culturais e tradicionais, culposa ou dolosamente, que configurem violações aos direitos humanos reconhecidos pela legislação nacional e internacional.” (BRASIL, 2007).

Ao elaborar o texto constitucional e os demais instrumentos legais que estão hoje em vigor, o Estado brasileiro procurou fixar garantias para que as sociedades indígenas pudessem exercer suas práticas culturais. Da mesma forma, fixou também o direito à vida como garantia fundamental indisponível, não se admitindo a violação da vida e da integridade dos indivíduos. Ao não se posicionar expressamente sobre as práticas tradicionais nocivas e não dar um mais rápido andamento a iniciativas que busquem versar sobre o tema, o Estado cria fundamentos tanto para aqueles que são contra a manutenção da prática do infanticídio indígena, como para aquelas que são favoráveis.

Considerações finais
O infanticídio indígena figura em nossos dias como uma prática tradicional nociva adotada por algumas das comunidades indígenas brasileiras. A justificativa para eliminar as crianças “indesejadas” pelo grupo tem como base questões culturais e a manutenção da prática levanta acaloradas discussões em nossos dias.

Nossa atual carta magna garantiu a todos os indivíduos, sejam eles indígenas ou não, o direito de manter e exercer suas práticas culturais, cabendo ao Estado a obrigação de apoiar e incentivar suas manifestações. Ao não tratar sobre as possibilidades de práticas culturais que tragam danos aos indivíduos, o Estado deixa sem solução questões como a do infanticídio indígena.

É preciso que esse tema seja debatido com seriedade e prioridade pelos legisladores brasileiros, que atuando com uma equipe formada por profissionais de diversas áreas possam alcançar um posicionamento que preserve a vida e o bem estar dessas crianças de forma a também preservar a cultura dos povos indígenas do Brasil. Tratar sobre o infanticídio indígena não implica privar o índio de suas tradições, mas sim repensar as práticas que tragam graves prejuízos aos indivíduos, estimulando a adoção de novas percepções sobre o caso.

Referências
Mariana Schemberger Bardi é graduada em História pela Universidade Estadual do Paraná, com pós graduação em educação especial pelo Instituto Rhemae em história e cultura afro-brasileira e indígena pela UNINTER. Graduanda em Direito na UniCesumare mestranda em História na Universidade Estadual de Maringá. Atua como professora de História na Escola Santa Edwiges, em Loanda/PR.

BARRETO, Maíra de Paula. O Infanticídio Indígena no Brasil sob a perspectiva do controle de convencionalidade. Enfoque dos Direitos Humanos. Tese de Doutorado. Universidade de Salamanca, 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.  Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Projeto de lei 1.057, de 2007. Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=351362>.

CAMACHO, Wilsimara Almeida Barreto. “INFANTICÍDIO” INDÍGENA: UM DILEMA ENTRE A TRAVESSIA E O PERMANECER À MARGEM DE SI MESMO. Dissertação (Dissertação em Ciências Sociais). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, Rio Grande do Sul. 2011

CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira. Cultura e diversidade. Curitiba: Ibpex, 2008.

FEIJÓ, Julianne Holder da C. S.O DIREITO PENAL E O ÍNDIO: DESAFIOS HISTÓRICOS SOB A NOVA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL. Revista Eletrônica do Mestrado em Direito da UFAL. V. 6, N. 1, 2015. Páginas 69 – 85. Disponível em:<http://www.seer.ufal.br/index.php/rmdufal/article/viewFile/1827/1335>. Acesso em: 12 out. 2018.

 

VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.


2 comentários:

  1. Quando se fala em infanticídio a própria palavra já gera alguns desconfortos na população de maneira geral. É um tema extremamente delicado, principalmente quando o assunto remete as questões indígenas. Nesse caso, gostaria que você comentasse um pouco mais sobre as pesquisas que existem atualmente no Brasil sobre infanticídio para conhecermos melhor o tema e assim qualificar o debate com nossos alunos.
    Obrigado,
    Cristiano Augusto Durat

    ResponderExcluir
  2. É um tema extremamente delicicado, mas de certa forma já tivemos avanços nesse quesito . Tinha no Brasil ( com transição de governo) não sei se tem mais grupos que iam e conversavam com os indígenas a fim de buscar outras formas ou trazer os indesejados para a nossa sociedade.

    O texto discute algo que desconforta a população ocidental no geral. Atualmente quais grupos ainda fazem infanticideo? e Onde eles estão localizados?

    Obrigada,
    Claudia de Jesus Azambuja

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.