INFANTICÍDIO
INDÍGENA NO BRASIL: ANÁLISES DA PRÁTICA CULTURAL DENTRO DO ÂMBITO JURÍDICO
A prática do infanticídio indígena é
questão recorrente em discussões de diversas áreas, que versam desde a busca
por entender as motivações e desdobramentos da prática, até aqueles que
pretendem adequar a prática cultural de acordo com o ordenamento jurídico
brasileiro. Embora seja um tema discutido há muitos anos, o infanticídio
indígena não é uma questão tratada com a devida importância no Brasil, mesmo
recentemente quando o assunto foi explorado de forma breve pela mídia.
O processo histórico de formação do
Brasil proporcionou uma cultura muito ampla e diversa, constituindo uma
sociedade formada por múltiplas influências culturais. Embora os povos
indígenas tenham consolidado sua cultura, é inegável o fato de que muitas de
suas vivências são interpretadas de forma preconceituosa e estereotipadas. É
reconhecida a importância da cultura indígena no Brasil e vários são os
dispositivos legais que determinam expressamente o dever do Estado em defender
e valorizar os aspectos culturais dos povos indígenas. Porém, são ainda esses
indivíduos alvos de discursos que questionam e deslegitimam as suas práticas
culturais. Como pondera Villares:
“(...)ainda hoje as crenças e religiões indígenas são ameaçadas por uma sorte de intolerâncias. A maior é o desprezo pela cultura indígena, suas crenças e manifestações religiosas. Esse menosprezo é fruto da visão do índio como ser inferior e primitivo. Reflete-se em atitudes intolerantes às cerimônias, festas, rituais, tradições, indumentárias e utensílios indígenas.” (VILLARES, 2009, página 331).
O infanticídio indígena é hoje
questão recorrente e polêmica, que requer reflexões de diversas áreas do saber.
Faz-se necessário um profundo entendimento sobre a prática, para ser possível
oferecer soluções que estejam em conformidade com o ordenamento jurídico
brasileiro ao mesmo tempo em que respeita e valoriza as práticas culturais
indígenas.
O
infanticídio indígena enquanto prática cultural
O termo ‘infanticídio’ tratado no
artigo 123 do código penal brasileiro refere-se à conduta da mãe que mata o
próprio filho, durante ou logo após o parto, por influência do estado
puerperal. O infanticídio indígena aqui discutido não trata da previsão do código
penal, visto que não é realizado apenas pela mãe em estado puerperal e porque a
motivação para a morte da criança se dá por questões culturais do grupo
indígena em que o indivíduo está inserido. Pela legislação, essa prática
cultural indígena estaria tipificada como homicídio e não como infanticídio,
levando alguns autores a adotarem outros termos (como sacrifício, por exemplo)
para tratar a questão. Ainda assim, se mantém o termo infanticídio indígena nas
discussões que aqui serão feitas por ser o mais frequentemente usado para abordar
a questão.
“Independente de terminologias e nomenclaturas, o que vale aqui é impulsionar o debate que visivelmente ganha destaque na comunidade indígena nacional. Não se pode fechar os olhos e os ouvidos para a realidade que tem sido trazida à tona por aqueles que são os legítimos preservadores de sua cultura, como também de sua existência como nação. Ver o infanticídio indígena é deparar-se com uma problemática até bem pouco oculta para a sociedade em geral, para o sistema jurídico, e para muitos que ainda desconhecem essa realidade persistente em algumas etnias indígenas.” (CAMACHO, 2011, página 41).
O infanticídio indígena aqui
discutido consiste em provocar a morte de crianças tidas como “indesejadas”
pelo grupo indígena que está inserido. Os motivos são diversos, podendo ocorrer
em casos de má formação física, filhos de mães solteiras, crianças gêmeas,
sinais de alguma deficiência, entre outros. Essa prática não é realizada em
todas as etnias e precisa ser analisada de acordo com o contexto cultural que é
próprio a cada grupo que o realiza. Embora seja ainda comum em algumas
comunidades a prática do infanticídio indígena, há indivíduos dentro desses
grupos que são contrários a manutenção da prática, levando até alguns pais a
atuarem contra a morte do próprio filho.
“A palavra infanticídio é derivada do latim infanticidiume significa morte de criança nos primeiros anos de vida. (...) Os motivos que levavam essas diversas sociedades à prática do infanticídio vão desde sua própria sobrevivência em função da escassez de recursos até a seleção de indivíduos considerados anormais, segundo critérios do grupo.” (CAMACHO, 2011, páginas 50 e 51).
O
infanticídio indígena se configura como prática tradicional nociva que leva membros
do grupo a cometer o homicídio quando a vítima está de acordo com determinados
critérios. A motivação para a prática tem como base aspectos culturais próprios
a algumas sociedades.
“A autora do crime, na maioria dos casos, é a mãe, porque, em geral, dá a luz sozinha e imediatamente, comete o homicídio. O homicídio de pessoas com deficiência parece ser a forma mais comum de infanticídio entre as tribos indígenas que ainda possuem tal prática.” (BARRETO, 2015, página 200).
Não
são apenas os índios do Brasil que realizam práticas tradicionais nocivas.
Outros lugares do mundo, com culturas muito diversas, também apresentam
práticas que trazem prejuízos a determinados indivíduos, baseando-se em
questões culturais. Um exemplo de prática tradicional nociva é a mutilação
genital feminina, assunto muito discutido internacionalmente e que ainda ocorre
em algumas sociedades.
“É possível afirmar que quase todas as culturas tiveram experiências de infanticídio e não apenas como casos isolados, mas como uma prática social. As razões, em geral, eram: planejamento familiar, a redução da população feminina, rejeição de filhos ilegítimos, incentivos econômicos, a eliminação dos deficientes, rituais de sacrifício e superstições.” (HORAN, 1982 apud BARRETO, 2015, página 196).
O
infanticídio indígena ainda figura como manifestação cultural de algumas
comunidades no Brasil. Há casos de crianças que foram poupadas da morte mesmo
quando atendiam às características que justificariam a prática. Os casos dos
bebês Sumawani e Iganani se tornaram referenciais para aqueles que buscam
combater a prática do infanticídio dentro de comunidades indígenas. As duas
crianças seriam abandonadas pelo grupo por terem nascido com características
não aceitas, mas nos dois casos foram salvas por familiares e levadas para
missionários que as encaminharam para tratamento médico fora do círculo
indígena. Embora sirvam de referência para a luta contra a manutenção do
infanticídio indígena, as ações destinadas a essas crianças foram fortemente
criticadas por antropólogos e pela Funai (Fundação Nacional do Índio), por
considerarem uma intervenção que trouxe impactos àquela cultura, além de violar
previsões legais.
A
prática do infanticídio indígena não é sempre tratada com a relevância
necessária, sendo um tema que a sociedade não discute com frequência. Ao
levantar o tema para discussão não se busca um julgamento aos indivíduos que
tenham praticado ou venham a praticar o ato. Tratando-se de uma prática
cultural é preciso entender que aquela comunidade o realiza por atribuir reais
significados à realização dessa prática tradicional nociva, não cabendo nenhuma
espécie de julgamento moral por parte dos indivíduos que não compartilham das
mesmas referências culturais. Como sabiamente argumenta Corrêa: “(...) as
práticas culturais só são inteligíveis no universo da própria cultura.”
(CORRÊA, 2008, página 103). Aqueles que não compactuam dos mesmos referenciais
não são capazes de compreender todas as motivações e significados que envolvem
a prática do infanticídio indígena.
Infanticídio
Indígena na atual legislação brasileira
A Constituição promulgada no Brasil em 1988 fixou
expressamente garantias para que os povos indígenas pudessem expressar seus
aspectos culturais. Além de garantir o exercício de sua cultura, determinou
ainda ser obrigação do Estado proteger as manifestações culturais.
“Art. 215. O Estado garantirá a todos
o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais.
§ 1º O
Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”(BRASIL,
1988).
Ao longo do texto constitucional o Estado
determinou várias garantias no que se refere ao direito à cultura aos povos
indígenas, mas não tratou de questões que envolvessem práticas tradicionais
nocivas, nem mesmo em outros dispositivos legais além da Constituição. Com
isso, deixou de versar sobre questões que tratassem de práticas culturais que
trazem prejuízos aos indivíduos e ferem outros direitos, como o direito à vida.
Nossa atual lei maior não ousou impor normas jurídicas a questões como a do
infanticídio indígena.
A Constituição de 1988 garantiu o pleno exercício
de manifestações culturais ao mesmo tempo em que determinou o direito à vida
como um dos direitos fundamentais, estabelecendo também, no artigo 227, ser
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à
vida, colocando-a a salvo de qualquer forma de discriminação, violência,
crueldade e etc. Garantir que todas as práticas culturais sejam preservadas sem
interferências do Estado significa não se posicionar perante o infanticídio
indígena e ferir o direito à vida. Caso optasse por medidas de intervenção, com
intuito de garantir o direito à vida, estaria o Estado ferindo o direito à
cultura?
“De um lado temos que a própria Constituição assegurou a reprodução cultural dos índios, abandonando a necessidade de assimilação e civilização dos mesmos, o que deveria excluir qualquer intervenção exógena na comunidade com fins de imposição cultural [e impor normas jurídicas externas é uma forma de dominação cultural que a Carta não ousou avalizar].” (FEIJÓ, 2015, página 82).
O projeto de lei 1057/07, conhecido como Lei
Muwaji, trata sobre práticas tradicionais nocivas em sociedades indígenas no
Brasil. O texto desse projeto de lei procura estender a garantia dos direitos
fundamentais a crianças, adolescentes, mulheres e idosos vulneráveis que vivem
em comunidades indígenas e tem seus direitos violados. Apesar de não tratar
apenas sobre a questão do infanticídio indígena, foi esse o tema que mais
causou polêmica no projeto que se encontra desde 2015 aguardando apreciação e
parecer do Senado Federal.
O mencionado projeto de lei ficou conhecido como
Lei Muwaji por referência a uma mãe da tribo dos suruwahas que, enfrentando as
tradições culturais de seu povo, evitou a morte da filha que nasceu com
deficiência. Embora encontre posicionamentos favoráveis ao que é proposto, esse
projeto tem sofrido com a oposição de antropólogos, indígenas e outros
indivíduos ligados à causa que o consideram o texto discriminatório, além de
acreditarem figurar como uma afronta ao direito dos indígenas de expressarem
livremente sua cultura.
Não há dispositivos legais que permitam a
disponibilidade do direito à vida em virtude de manifestações culturais,
sociais ou religiosas. Não se admite na Constituição em vigor que os pais ou
responsáveis por uma criança a privem do direito de viver com dignidade para
atender às práticas culturais de seu grupo. O projeto de lei 1057/07 não prevê
punição para os indígenas que tenham praticado, ou que venham a praticar, o
infanticídio indígena, mas estabelece medidas que busquem proporcionar vida
digna a esses indivíduos, através do diálogo em direitos humanos, visando o
abandono da prática através da conscientização. O artigo 2º da referida lei
esclarece sobre quais práticas tradicionais nocivas busca tratar:
“Art. 2º.
Para fins desta lei, consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem
contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como
I.
homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores;
II. homicídios de recém-nascidos, em casos de
gestação múltipla;
III. homicídios de recém-nascidos, quando estes são
portadores de deficiências físicas e/ou mentais;
IV. homicídios de recém-nascidos, quando há
preferência de gênero;
V. homicídios de recém-nascidos, quando houver
breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão;
VI. homicídios de recém-nascidos, em casos de
exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo;
VII. homicídios de recém-nascidos, quando estes
possuírem algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais;
VIII. homicídios de recém-nascidos, quando estes
são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;
IX. homicídios de crianças, em caso de crença de
que a criança desnutrida é fruto
X. de maldição, ou por qualquer outra crença que
leve ao óbito intencional por desnutrição;
XI. Abuso sexual, em quaisquer condições e
justificativas;
XII. Maus-tratos, quando se verificam problemas de
desenvolvimento físico e/ou psíquico na criança.
XIII. Todas as outras agressões à integridade
físico-psíquica de crianças e seus genitores, em razão de quaisquer
manifestações culturais e tradicionais, culposa ou dolosamente, que configurem
violações aos direitos humanos reconhecidos pela legislação nacional e
internacional.” (BRASIL, 2007).
Ao elaborar o texto constitucional e os demais
instrumentos legais que estão hoje em vigor, o Estado brasileiro procurou fixar
garantias para que as sociedades indígenas pudessem exercer suas práticas
culturais. Da mesma forma, fixou também o direito à vida como garantia
fundamental indisponível, não se admitindo a violação da vida e da integridade
dos indivíduos. Ao não se posicionar expressamente sobre as práticas tradicionais
nocivas e não dar um mais rápido andamento a iniciativas que busquem versar
sobre o tema, o Estado cria fundamentos tanto para aqueles que são contra a
manutenção da prática do infanticídio indígena, como para aquelas que são
favoráveis.
Considerações
finais
O infanticídio indígena figura em nossos dias como
uma prática tradicional nociva adotada por algumas das comunidades indígenas
brasileiras. A justificativa para eliminar as crianças “indesejadas” pelo grupo
tem como base questões culturais e a manutenção da prática levanta acaloradas
discussões em nossos dias.
Nossa atual carta magna garantiu a todos os
indivíduos, sejam eles indígenas ou não, o direito de manter e exercer suas
práticas culturais, cabendo ao Estado a obrigação de apoiar e incentivar suas
manifestações. Ao não tratar sobre as possibilidades de práticas culturais que
tragam danos aos indivíduos, o Estado deixa sem solução questões como a do
infanticídio indígena.
É preciso que esse tema seja debatido com seriedade
e prioridade pelos legisladores brasileiros, que atuando com uma equipe formada
por profissionais de diversas áreas possam alcançar um posicionamento que
preserve a vida e o bem estar dessas crianças de forma a também preservar a
cultura dos povos indígenas do Brasil. Tratar sobre o infanticídio indígena não
implica privar o índio de suas tradições, mas sim repensar as práticas que
tragam graves prejuízos aos indivíduos, estimulando a adoção de novas
percepções sobre o caso.
Referências
Mariana Schemberger Bardi é graduada em História
pela Universidade Estadual do Paraná, com pós graduação em educação especial pelo
Instituto Rhemae em história e cultura afro-brasileira e indígena pela UNINTER.
Graduanda em Direito na UniCesumare mestranda em História na Universidade
Estadual de Maringá. Atua como professora de História na Escola Santa Edwiges,
em Loanda/PR.
BARRETO, Maíra de Paula. O Infanticídio Indígena no Brasil sob a perspectiva do controle de
convencionalidade. Enfoque dos Direitos Humanos. Tese de Doutorado.
Universidade de Salamanca, 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição
da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Projeto
de lei 1.057, de 2007. Dispõe
sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos
fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades
ditas não tradicionais. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=351362>.
CAMACHO, Wilsimara Almeida Barreto. “INFANTICÍDIO” INDÍGENA: UM DILEMA ENTRE A
TRAVESSIA E O PERMANECER À MARGEM DE SI MESMO. Dissertação (Dissertação em
Ciências Sociais). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, Rio
Grande do Sul. 2011
CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira. Cultura e diversidade. Curitiba: Ibpex, 2008.
Quando se fala em infanticídio a própria palavra já gera alguns desconfortos na população de maneira geral. É um tema extremamente delicado, principalmente quando o assunto remete as questões indígenas. Nesse caso, gostaria que você comentasse um pouco mais sobre as pesquisas que existem atualmente no Brasil sobre infanticídio para conhecermos melhor o tema e assim qualificar o debate com nossos alunos.
ResponderExcluirObrigado,
Cristiano Augusto Durat
É um tema extremamente delicicado, mas de certa forma já tivemos avanços nesse quesito . Tinha no Brasil ( com transição de governo) não sei se tem mais grupos que iam e conversavam com os indígenas a fim de buscar outras formas ou trazer os indesejados para a nossa sociedade.
ResponderExcluirO texto discute algo que desconforta a população ocidental no geral. Atualmente quais grupos ainda fazem infanticideo? e Onde eles estão localizados?
Obrigada,
Claudia de Jesus Azambuja