LEI 11645/2008 E ATIVIDADES EDUCACIONAIS ALTERNATIVAS COMO OPÇÃO PARA O PROFESSOR: O CASO DO INSTITUTO DOS PRETOS NOVOS
A formação do povo brasileiro, seja em seus
aspectos sociais ou culturais, origina-se da multiplicidade étnica encontrada
no país, originalmente habitado pelo nativos indígenas, em seguida pelos
europeus colonizadores, e posteriormente pelos africanos trazidos para o país
pela escravização. Compreender e estudar esta multiplicidade é um dos caminhos
para garantir respeito à diversidade étnica, cultural e social do país, e o
ensino de história é determinante para o atingimento deste respeito.
O objetivo deste trabalho é discutir a
relevância do ensino de história e cultura afro-brasileira através de ações educacionais
voltadas para o público mais amplo que apenas o escolar. Para tal, usaremos o
Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, ambos elementos físicos da
diáspora africana e da memória da escravidão no Rio de Janeiro, como exemplos
de objetos para trabalhar a questão da cultura e presença afro-brasileira, pensando
mais particularmente na ações educacionais empreendidas pelo Instituto dos
Pretos Novos.
Falar da importância que os africanos
escravizados e os indígenas tiveram na formação do povo e da cultura
brasileiros é de tal forma importante que existe um artigo constitucional que protege
as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de
outros grupos “participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215),
trazendo um reconhecimento da relevância da contribuição destes povos para
nossa formação cultural. Posteriormente, a legislação atua também no ensino
escolar, para que haja maior conhecimento do assunto e para que a memória
destes grupos étnicos não seja silenciada, através da promulgação da lei
10.639/2003, que tornava obrigatório o ensino de história africana e
afro-brasileira, complementada pela lei 11645/2008, que acrescenta também o
ensino de história indígena De acordo com as referidas leis, a educação deve
abordar “diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir de dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional”.
A partir da entrada da lei em vigor,
mudaram alguns parâmetros tanto na formação de alunos como na de professores,
tais como a inclusão curricular de disciplinas que preparassem o educador para
sua abordagem no ambiente educacional. Havia até então uma grande lacuna no
conhecimento dos educadores quanto à história da África. Esta, até então, se
limitava à civilização egípcia – muitas vezes sequer referenciada como africana
– e posteriormente, quando do início do tráfico escravista, como fornecedora de
“carga humana” para os navios negreiros. O africano surgia na história apenas
como escravizado, e era como se sua relevância se esvaísse nas abordagens
historiográficas do pós-abolição.
Com o centenário da abolição em 1988 houve
um aumento dos estudos sobre a temática da escravidão e do pós abolição, e
ficou evidente a necessidade de maiores discussões acerca do tema, mas ainda
seriam necessários mais de 20 anos para que houvesse reflexos legislativos,
resultando nas referidas leis e na inclusão de disciplinas específicas nos
cursos de História. Esta mudança na formação dos educadores se refletiria na
dinâmica do ambiente escolar e nas
discussões no meio acadêmico com a inserção de temas relativos à escravidão e
ao pós abolição.
Mesmo com a legislação de obrigatoriedade
do ensino, ainda permanece uma lacuna nos estudos sobre dos povos formadores da
cultura brasileira aos que tiveram sua formação anterior à promulgação da lei. Existem
várias discussões acadêmicas sobre a questão da importância da cultura negra na
sociedade brasileira, mas ainda falta um longo caminho para que isso se reflita
adequadamente nos livros didáticos. Para muitas pessoas do público leigo ainda
permanece a visão dos índios como “indolentes” ou vítimas de morticínio e os africanos apenas
como escravizados. Não são publicizadas suas revoltas ou estratégias de
resistência, e no pós abolição é como se eles “sumissem” da história. É
necessário discutir e estudar a participação destas pessoas no cotidiano e na
cultura brasileira (MUNANGA, 2008).
O Cais do Valongo, considerado o local de
desembarque e comercialização de cerca de um quarto dos africanos escravizados
no continente americano, localiza-se na região Portuária do Rio de Janeiro, e
foi escavado em 2011 nas obras de renovação urbana para os eventos esportivos
Copa e Olimpíadas (AZEVEDO, 2016B). A
região do Valongo concentrou o comércio de africanos escravizados do fim do
século XVIII até 1831, quando da proibição do tráfico negreiro. Na década de
1840, o local foi reformado e antigo mercado de escravizados foi transformado
numa praça pelo arquiteto Grandjean de Montigny, da missão artística francesa,
e por ali desembarcou em 1843
a imperatriz Tereza Cristina, momento em que o cais foi
rebatizado como Cais da Imperatriz. Durante as reformas urbanas do início do
século XX, levadas a cabo por Rodrigues Alves e Pereira Passos, o cais foi
aterrado – num processo de “modernização” da cidade que culminou em um
silenciamento da memória da escravidão e do período imperial (BENCHIMOL, 1992;
IPHAN, 2016). Já na contemporaneidade, havia conhecimento do local do cais mas
não havia interesse no resgate desta memória, mesmo após proposições de
historiadores e ativistas do movimento negro a partir da década de 1980. Com as
obras de reforma da região portuária a partir de 2009 e a escavação do sítio
arqueológico, houve um fortalecimento das reivindicações por sua manutenção
(JORDÃO, 2015), e em 2017 o Cais foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio
Cultural da Humanidade e determinado como sítio sensível, ou seja, que evoca a
memória de crimes contra a humanidade. Para efeito de comparação, outros dois
lugares considerados como sítios sensíveis pela Unesco são o campo de
concentração nazista Auschwitz, na Polônia, e a cidade de Hiroshima, vítima de
uma bomba atômica na Segunda Guerra Mundial.
O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1769 a 1830, para resolver a
superlotação do cemitério de Santa Rita, e abrigava os corpos dos escravizados
que morriam durante a travessia atlântica ou logo após sua chegada ao Brasil. Uma
vez que o mercado havia sido transferido para a região do Valongo, era mais
sensato manter um cemitério nas proximidades. Através de pesquisas realizadas
nos registros de óbitos da Santa Casa, concluiu-se que foram enterradas ali milhares
pessoas, mais de 6 mil apenas entre 1824 e 1830, em condições de bastante
precariedade (PEREIRA, 2007). Foi descoberto por acaso, quando a família que
adquiriu três casas na rua Pedro Ernesto foi fazer uma reforma e começou a se
deparar com ossadas humanas em 1996. Lutando por auxilio governamental sem
sucesso, em 2005 criaram o IPN – Instituto dos Pretos Novos, que se dedica a
preservar a memória da escravidão e do tráfico negreiro, e desde 2015 promove
uma série de ações educacionais voltadas ao grande publico, com o intuito tanto
de prover a subsistência do Instituto, atualmente sem nenhuma forma de
patrocínio governamental, quanto de popularizar a importância cultural e
histórica daquela área e dos africanos escravizados que por ali passaram. A
história da utilização do local como cemitério, de sua redescoberta e da
fundação do Instituto encontra-se no livro “À Flor da Terra”, do historiador
Júlio Cesar Pereira.
Com a elevação do Cais do Valongo a
patrimônio cultural da Humanidade em 2017, houve um aumento da visibilidade
tanto do Cais quanto do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança
Africana por parte da mídia, conjugado a ações educacionais para fomentar o
conhecimento sobre esta parte da nossa história, uma vez que além de sítio
sensível, o local pode ser considerado local de memória, ou seja, um local que
evoca determinados acontecimentos ou processos que são relevantes para uma
população (NORA, 2012). O Circuito foi criado em 2011 pela Prefeitura, e o próprio
consórcio Porto Maravilha, que coordenava as obras da região portuária, tinha
um projeto de visitas guiadas ao Circuito, bem como o projeto Porto Cultural
que previa a aplicação dos recursos arrecadados para as reformas em projetos
que resgatassem a diversidade cultural da área (que estão paralisados, uma vez
que há uma grande discussão em torno do repasse dos recursos de investimento
das obras portuárias, impactando até mesmo em serviços básicos como iluminação
e saneamento públicos).
Gostaria de destacar aqui, como
possibilidades do ensino de história atreladas à Lei 11645-2008, as iniciativas
educacionais do IPN, que trabalha em parceria com historiadores, antropólogos,
arqueólogos e museólogos, não só para preservação do acervo mas também para
difusão do saber ali pesquisado. E para tal, empreende uma série de ações
educacionais, que vão de oficinas livres a dois cursos de pós-graduação. Uma das
suas principais atividades é a visita guiada ao Circuito da Herança Africana,
aula a céu aberto realizada no mínimo uma vez por mês desde 2012, e que
percorre os principais pontos da zona portuária ligados à escravidão, como o
Cais do Valongo, o Largo de São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal e por fim
o próprio Instituto dos Pretos Novos. Esta visita é realizada tanto com grupos
de alunos em idade escolar quanto com o público geral interessado, trazendo uma
conexão entre o passado escravista, a vivência destas pessoas escravizadas durante
o período de cativeiro e no pós abolição, e o cotidiano urbano do Rio.
Além deste circuito, destacamos outras
ações que o IPN vem realizando desde 2015, e que vão ao encontro do objetivo
proposto pela Lei 11.645, de discutir a relevância da diáspora africana na
composição étnica, cultural e da personalidade brasileira, tais como as elencadas
a seguir:
12/05/15
– Oficina: África – da escravidão à colonização
10/03/16
– História da zona portuária na perspectiva da Afro Culturalidade
11/03/16
– História do Mercado de Escravos do Rio de Janeiro
17/03/16
– Cosmogonia Africana: a visão de mundo dos Yorubas
05/05/16
– Educação Patrimonial: por uma pedagogia crítica da patrimonialização
14/07/16
– O cemitério dos Pretos Novos numa perspectiva antropológica
14/09/17-
Contos de Tradição Oral Africana e Afro-brasileira
25/07/18–
Territórios Subalternos: O papel das irmandades de Homens Pretos na expansão
territorial do RJ Setecentista
30/07/18
– A história dos Pretos Novos: Diáspora Atlântica
31/07/18
– O cemitério dos Pretos Novos de Santa Rita
12/09/18-
História Pública e sítios de memória sensível
18/09/18
– Escravidão e Imigração em relação histórica no Porto
19/09/18
– Oficina Mídia, Racismo e Educação
29/09/18
– Caminhos da escravidão – aula a céu aberto
Conforme pode ser observado, a grande
maioria das ações educacionais obedece a uma temática de introdução ou
ampliação do conhecimento sobre a cultura e a história negras, baseada
essencialmente na ligação da região portuária com a escravidão, e de forma
transversal por outros aspectos culturais, como a cosmogonia ou os contos de
tradição oral, que permeiam a cultura e a religião de matriz africana em nossos
dias.
Consideramos as ações e a própria
iniciativa do IPN como dignos de nota, não só pela sua relevância pela
perspectiva histórica, mas também por tratarem com respeito a cultura
diaspórica. As culturas de diáspora são, via de regra, guiadas pela necessidade
de reinvenção da identidade e da vida através dos laços que são formados no
ambiente de destino. A diáspora pode representar ligação, neste sentido, mas
também isolamento, a partir do momento em que os povos diaspóricos são
segregados ou discriminados. E, conforme mostra a história do Brasil, foi
exatamente o que aconteceu com os africanos escravizados, forçosamente trazidos
ao Brasil. Sua exclusão e marginalização perdurou ao longo da história, tendo
reflexos na contemporaneidade, no entanto é inquestionável sua participação na
formação da identidade e da cultura brasileira.
O ponto que gostaríamos de ressaltar consoante
a estas ações educacionais é seu alcance para o grande público. O público de
atuação das mesmas era composto de professores, historiadores, ativistas de
movimento negro, e de inúmeras pessoas interessadas em urbanismo e em história
do Rio de Janeiro, que através das atividades teriam a oportunidade de ampliar
seu conhecimento acerca da história do Rio e de sua população negra, como
também estabelecer conexões sobre sua importância na nossa cultura e população
atuais.
Atualmente o educador em história enfrenta
diversos desafios, da própria estrutura educacional a discussões acerca de sua
autonomia em sala de aula, e dentre as estratégias de atuação, os espaços
educacionais não convencionais podem ser uma saída para uma discussão mais
ampla e com geração de um saber significativo, ancorado em vivências e
percepções dos aprendizes com relação à sua vivência cotidiana. Consideramos,
portanto, que iniciativas externas ao ambiente escolar, como de museus, centros
culturais ou institutos como o IPN podem ser vistas como uma alternativa de resposta
e auxílio às questões colocadas perante o educador, concernentes às revisões
curriculares e novas dinâmicas escolares, uma vez que proporcionam uma conexão
entre a realidade cotidiana do aluno e uma perspectiva global de inserção da
cidade e do país na dinâmica da história da escravidão e da resistência.
Referências Bibliográficas:
Vanessa Araújo é graduada em História e
especialista em História e Cultura no Brasil pela UNESA e mestranda em
História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC – Fundação Getúlio Vargas.
AZEVEDO, André Nunes;
PIO, Leopoldo Guilherme. “Entre o porto e a história: revitalização urbana e
novas historicidades no porto do Rio de Janeiro com vistas às Olimpíadas de
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8, 2016, pp. 185–208.
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2018
Trabalhar História Regional e Local a partir da pesquisa apresentada é essencial para proporcionar aos educandos o acesso a sua própria História e de seus antepassados. Quais as estratégias que a Mestranda recomenda aos educadores que queiram desenvolver esta atividade em suas escolas?
ResponderExcluirAtt. Isac Silva de Almeida